Antes de tudo, querido leitor e querida leitora, desejo expor algumas observações. Seria muito extensivo para cada um de vocês, expor os conceitos de justiça ao longo do Antigo e Novo testamento. O que farei por vocês é dar uma introdução a respeito da ideia de justiça, que os/as ajudarão entender melhor alguns livros do Antigo Testamento e também, a noção de justiça em Paulo. Particularmente, não sou uma teóloga que concorde muito com a noção de que o todo (ou parcialmente) os escritos do Novo testamento tenham um peso excessivamente da compreensão do mundo grego(-romano). Por ter feito a graduação em filosofia, posso dizer que existe, sim, uma influência ambiental (os evangelistas, os apóstolos e a comunidade viviam e se encontram ambientados em um sistema sociocultural grega-romana), mas há uma síntese de um “espírito” semita herdeiro da tradição e da experiência religiosa de Israel. Para entender melhor, caro leitor e querida leitora, pensemos em nós! Pregamos o Evangelho — evento salvífico da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo —, dentro de nosso ambiente social e cultural. Falamos de Deus, dentro da (sub)cultura brasileira, mas carregados de um espírito (proto)cristãos – pois, realizamos leituras e interpretações bíblicas de acordo com o nosso tempo (as suas demandas e condicionalidades humanas), sem se retirar do Espírito que vivifica a letra da Palavra. Pois bem!
Quando nos deparamos com o termo “justiça” (sdq e seus derivados hebraicos) no Antigo testamento, podemos encontrar duas tendências de compreendê-las, que, na realidade, estão interligadas com a salvação (soteriologia) e com o futuro (escatologia) em/por Iahweh, Javé — Deus. Conforme a experiência religiosa dos hebreus/israelitas, a justiça é a retidão de um comportamento interior de uma relação bilateral, isto é, a justiça é relacional – ser humano com Deus – dentro do contexto da aliança. O que significa que
[…] a justiça de Deus, que se revela na sua maneira divina de operar em relação a seu povo, isto é, na sua ação redentora e salvífica […], com a qual Deus se mostra fiel às suas promessas, malgrado as repetidas infidelidades dos homens. (MARQUES; SILVA, 2018, P. 579, grifo nosso).
A justiça “descreve” o caráter ou a ação de Deus, que age corretamente em um relacionamento de aliança, além de determinar como os seus filhos e as suas filhas devem agir nessa relação. Neste sentido, a relação das pessoas com o próximo refletia o aspecto relacional da aliança com Iahweh, Javé – por isto, queridos e queridas, os Códigos ou o Decálogo! A fidelidade de Deus à aliança e a sua justiça são demonstradas por meio de atos salvíficos. Lembra Hawthorne, Martin e Reid que
essa salvação é variadamente experimentada como vitória de Israel sobre os inimigos, ou justificação pessoal da própria inocência perante Deus na presença dos inimigos, e inclui elementos soteriológicos [de salvar] e forenses [esclarecimentos dos crimes para serem julgamentos]. (HAWTHORNE; MARTIN; REID, 2008, p. 759, acréscimos de entendimento).
A partir dos profetas clássicos do século VIII a.C., a justiça passa a ter um apelo mais jurídico e ético, conforme a aliança. No geral, podemos dizer que a justiça relacionava as pessoas a Deus e aos seus propósitos na restauração da ordem para sua criação. Observem, caro leitor e querida leitora, que aqui há uma experiência moral (prática e não, abstrata, como o pensamento grego clássico, por exemplo) e uma noção política, digamos assim. Na política, a justiça estava ligada a promoção do bem comum, vivenciada como uma “justiça de paz” (o famoso shalom bíblico!) por meio da tutela dos direitos sociais da pessoa. Embora no âmbito moral, a justiça havia uma amplitude de “retidão integral” ou “santidade” (lembremos do Código ou da Lei de Santidade, achada em Levítico 17-26!) ligado as relações sociais entre as pessoas humanas e às determinadas situações em que existe um direito à vida ou à liberdade (e dentre outros!) e também, do dever de se comportar rigorosamente de modo que o titular do direito possa gozar efetivamente do domínio sobre o que lhe pertence (por exemplo, Êxodo 21, 2-11; 12-16; 22, 4-14; 23, 1-9).
Agora, vocês, querido leitor e querida leitora, devem querer saber: E Paulo? Então… é a partir do conceito veterotestamentário de justiça (dikaiosyne), que poderemos entender o apóstolo dos gentios. Contudo, a ideia de justiça em Paulo está consoante com os textos do Antigo testamento (no seu caso, a sua “Bíblia” era a LXX!) sobre salvação, em que o agir redentor de Deus para com o seu povo da aliança. Retornando o que já vos escrevi acima: é a justiça de Deus (relacional, bilateral com o ser humano) que salva dos inimigos, de situações ameaçadoras e do estado de alienação de Deus (desobediência, infidelidade… do ser humano, viu?!). Novamente, podemos considerar que a justiça de Deus é ação salvífica e também, o amor que restaura as relações (por isto, o apóstolo fala tanto do amor ágape e também da reconciliação em Cristo Jesus!).
Paulo entende que Deus é fiel a sua criação e ao seu relacionamento de aliança (Romanos 3,3-4), sendo a sua ação justa, é ela que, em resposta a rebeldia da criação, que o apóstolo define como “justiça de Deus”: o ato de Deus restaurar o relacionamento rompido, separado, dividido. Aqui, a justiça é o amor e a intervenção redentora de Deus no mundo por intermédio da obra de Cristo (Romanos 3,21-26). A encarnação da justiça divina na obra redentora da cruz direciona ao perdão e este, restaura as relações rompidas; por isto, a justiça (assim, como a graça de Deus!) não é algo conquistado por nossos esforços ou realizações humanas para se tomar posse (vangloriar-se com soberba e arrogância na conquista por meio da Lei), pois ela é puramente ato de Deus e é um dom (um presente, uma dádiva, uma gratuidade!) recebido somente pela fé. Este ato de Deus justifica (corrige) o pecador e o transgressor, restaurando o relacionamento divino-humano por meio da propiciação de Cristo feito em nosso lugar. Assim, a ideia de justiça no Antigo testamento como fidelidade e amor constante de Deus pelo seu povo é considerado pelo apóstolo dos gentios como uma ação divina expressa na vida, na morte e na ressurreição de Jesus Cristo – o Evangelho é poder de Deus! A aceitação dessa benignidade divina pelo ato de fé nos justifica (corrige) com Deus, porque a sua justiça se encontra presente nesse relacionamento restaurado (e reconciliado em Cristo!), quando a vida passa a ser vivida em conformidade com a vontade e os propósitos de Deus.
Queridos e queridas, ufa! Desculpem-me… até empolgo-me, quando escrevo sobre a Palavra! Eu poderia falar mais da perspectiva de Paulo em sua Epístola aos Romanos, mas seria extremamente extensivo e o nosso ambiente é bem limitado. Talvez, eu poderia estar, face a face com vocês e acompanhados com as suas Bíblias, pois entender as Sagradas Escrituras é ter a Bíblia em mãos e um caderno ao lado... Uma última observação que desejo fazer é que a Bíblia não busca uma ideia abstrata (como o pensamento grego, latino e até as ideias contemporâneas de uma filosofia política) da justiça, mas procura vivê-la na prática cotidiana – “o que é ser justo em determinado momento, conforme a vontade de Deus?”, “como fazer justiça no mundo, de acordo com a Palavra de Deus?”.
Referências:
BROWN, Colin; COENEN, Lothar. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000.
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia cristã, 2008.
HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.; REID, Daniel G. Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo: Vida nova; Paulus; Edições Loyola, 2008.
MARQUES, Mariosan de Sousa; SILVA, Rosemary Francisca Neves. As múltiplas faces da justiça (הקדצ) no Antigo Testamento. Fragmentos da cultura, Goiânia, v.28, n.4, p. 578-586, out./dez., 2018.
VANGEMEREN, Willem A. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento: volume 3. São Paulo: Cultura cristã, 2011.
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